GRANDES NOMES
RIBEIRO DOS REIS
Natural de Lisboa — 10 de
Julho de 1896 a 3 de Dezembro de 1961
A paixão tem coisas assim.
António Ribeiro dos Reis, nos seus primeiros tempos de jogador
de futebol, ia a pé de Santo Amaro, onde morava, até ao campo do
Benfica, em Sete Rios. Era como que o seu aquecimento.
Depois do treino ou do jogo voltava pelo mesmo caminho. Costumava
dizer que a Rua Maria Pia lhe parecia muito mais comprida
no regresso. Era jogador, mas ainda não tinha botas de futebol.
Usava as de passeio, reforçadas com ligaduras de pano, para
evitar estragos. Talvez assim se prolongasse a sua vida. Para
que a família, de não muitas posses, não entrasse em despesas
supérfluas.
Foi na Casa Pia, onde
estudou e aprendeu a ser homem, que descobriu o fascínio do futebol. E do atletismo. A 2
de Novembro de 1913 disputou o seu primeiro jogo com a camisola do Benfica, no
Campo de Sete Rios, pelas terceiras categorias, contra o Sacavenense, vencendo por
8-0. Tinha 16 anos. Nesse ano foi campeão de Lisboa de terceiras (o equivalente
hoje aos juvenis), mas o seu talento deslumbrara de tal forma que o puseram a jogar, também,
em segundas categorias. O Benfica voltou a ganhar. E, assim, no ano da sua
estreia, Ribeiro dos Reis ganhou dois Campeonatos. Não poderia ser mais auspicioso o debute. Em
31 de Dezembro de 1914 estreou-se na primeira categoria do Benfica, em San
Sebastian. E na primeira categoria continuou até 18 de Janeiro de 1925. Só de lá sairia 11
anos volvidos. Mas não era homem de um só ofício. Ou de uma só paixão. Antes pelo
contrário. Um ano após a sua chegada ao Benfica iniciou a carreira de jornalista desportivo, em o
Sport Lisboa, com um artigo sobre Jean Bouin, que, nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, dois
anos antes, tinha travado duelo emocionante com o finlandês Kolehmainen, nos
5000 metros. «Estava-se no princípio da I Grande Guerra. A
França fora invadida pela
Alemanha e nas trincheiras francesas batiam-se alguns dos seus
melhores campeões. Numa
tarde de Outubro desse ano de 1914 os jornais trouxeram-nos a notícia da morte de um
valoroso atleta e destemido patriota: Jean Bouin. Foi com um
artigo sobre a sua vida e o
sentido da sua heroicidade que entrei no jornalismo.»
Se não foi futebolista de
classe excepcional, nunca deixou de se revelar de grande utilidade no Benfica, pela
sua estonteante velocidade (que lhe valera títulos de campeão de atletismo na estafeta do
Benfica) e pelo seu espírito de luta. Mas, sobre as suas características de
batalhador valoroso, é de anotar a sua propensão para aproveitar todas as oportunidades, fixada
numa passagem de um Perfil à Pena publicado em A BOLA:
«Metia golos com a canela
para serem mais saborosos.»
Em 18 de Janeiro de 1925,
Ribeiro dos Reis pendurou as botas. Antes do seu último jogo, José Pimenta, então capitão
da equipa do Benfica, entregou-lhe, em nome de todos, um tinteiro de prata. Era, mais
que um signo, a profissão de fé no jornalista brilhante que haveria de ser. Se como
jogador e jornalista pediu meças aos melhores, na história do futebol ficaria, também,
como treinador, como seleccionador, como árbitro, como dirigente modelar. Ao seu
jeito de homem bom. Secretário-geral da FPF, presidente da Assembleia Geral do Benfica,
anos a fio, Águia de Ouro. Em Janeiro de 1943 o Benfica quis prestar-lhe a homenagem que
merecia, justificando-a assim: «Vibrante, sincera, grandiosa, mas sem o falso
esmalte protocolar, a alguém do desporto nacional, homem de espírito forte e forte
acção, que tem lutado sempre com a mesma fé, indiferente à maledicência, alheio aos
manejos da baixa política desportiva. Os murmúrios dos despeitados e dos maldosos
nunca o fizeram vacilar no caminho recto.» Ao que ele, emocionado, dourando as
palavras com a humildade que sempre o caracterizou, retorquiu: «Trouxe-se
demasiado à boca de cena o indivíduo. É justo esbater a sua figura para fazer surgir em seu
lugar a colectividade que o formou, em que ele se fez gente. As homenagens que me foram aqui
prestadas endereço-as ao Benfica, em cuja escola de virtudes temperei o meu
carácter.» Sempre foi assim — homem de carácter. Que a paixão rubra não cegava. Por
exemplo, em 1933, num jogo entre o Benfica e o F. C. Porto, nas Amoreiras, o árbitro
espanhol Ramon Melcon expulsou Vítor Silva, a estrela do Benfica, por mal percebida agressão a
Miguel Siska. Gasolina nas labaredas! Os adeptos benfiquistas protestaram, ululantes, o
capitão recusou abandonar o campo, o árbitro pediu ajuda policial, exigindo ao guarda
que desse voz de prisão ao jogador, por desrespeito à autoridade. António Ribeiro
dos Reis saltou das bancadas, abeirou-se de Vítor Silva, deu-lhe um raspanete, pegou-lhe no
braço e pô-lo na rua. Os benfiquistas calaram-se. Os portistas bateram palmas...
Selecção por... bambúrrio
Em 17 de Dezembro de 1921,
Ribeiro dos Reis envergou a camisola de Portugal, no primeiro jogo da Selecção
Nacional, contra a Espanha. Nessa equipa estava, também, Cândido de Oliveira. Os
caminhos continuariam cruzados pela vida fora. Mas, para Ribeiro dos Reis, a sua
internacionalização fora... um capricho dos deuses. «Fui internacional um pouco por bambúrrio, por
casualidade. Alguns dos candidatos mais categorizados amuaram, não compareceram ao
último treino e eu tive a sorte de fazer, nessa tarde, uma exibição acertada, sobre um
terreno enlameado, em que geralmente me saía sempre bem.
Nesse primeiro
Portugal-Espanha desempenhei vários papéis: fui o avançado-de-centro da equipa; a seguir ao jogo
tive de escrever a crónica telegráfica para O Sport de Lisboa, onde era redactor; e, por
fim, no banquete, na altura dos brindes, tive de ler o discurso da Federação Portuguesa, pois o
delegado oficial, sr. Raul Nunes, mal podia falar devido a uma inflamação da
laringe...»
A alpercata de Albino...
Nunca quis fazer de ser
treinador modo de vida. Quando o Benfica entrava em
crise... técnica, António Ribeiro dos Reis era
convidado a tomar conta da equipa. Em jeito mais ou
menos sebastiânico. Sempre gratuitamente. Assim, viveu
alguns momentos de glória. E engrandeceu a
história do seu clube. Mas, pela vida fora o diria, vezes sem
conta, a conquista mais arrebatante foi o Campeonato
de Lisboa de... 1932. Havia 13 anos que os benfiquistas não ganhavam nada, no futebol,
ao nível das primeiras categorias, ofuscados pelo Sporting e pelo Belenenses. Era um
treinador com olho de lince, como se percebe bem por uma história contada por Augusto
Amaro, guarda-redes do Benfica nesse tempo de vacas magras: «O Albino não
chutava com o pé esquerdo. Tinha a mania de que não era capaz. Um dia, na cabina, antes do
treino, Ribeiro dos Reis chamou-o e disse-lhe que não voltaria a treinar-se com a bota no
pé esquerdo e que em seu lugar teria de calçar uma alpercata.
Foi remédio santo. Não muito
depois, Albino já era um rematador temível com o pé que pensava que era cego...»
A cantiga da chacota e o
horror...
Entre 1921 e 1924, os
comandos da Selecção Nacional estavam entregues a um comité que chegou a ter... seis
elementos. A escolha dos jogadores era por votação.
Democraticamente. O sistema
não funcionou. Foi preciso boleá-lo. Por isso, em 1924, Ribeiro dos Reis foi
investido nas funções de seleccionador... único. Com plenos poderes.
Ainda nem sequer deixara a
sua carreira de jogador, o que ainda mais mérito dá à escolha. Depois de uma
derrota com a Espanha (0-2), em 17 de Maio de 1924, Portugal regista um feito histórico:
a primeira vitória da Selecção, contra a Itália (1-0). Para apostar com mais ardor na carreira
militar, Ribeiro dos Reis cedeu, em 1926, o cargo a Cândido de Oliveira. A seleccionador
voltaria oito anos depois. Sob maus ventos...
O apuramento para o
Campeonato do Mundo de 1934 pôs frente a frente Portugal e Espanha. Aqueceram-se
esperanças. Mas, uma tarde aziaga em Chamartin dissiparia todos os sonhos. Os espanhóis
ganharam por 9-0! Foi o tal jogo em que nas bancadas se gritou, em chacota, para o banco de
Portugal: «Ponga los dos.» Na baliza estava o portista
Soares dos Reis, que se
treinava... apanhando coelhos que o técnico libertava no campo.
Ainda nem sequer chegara o
intervalo, já Portugal perdia por 0-5 e Soares dos Reis foi substituído pelo benfiquista
Augusto Amaro. Os golos continuaram a entrar. E os espanhóis a gritar cada vez
mais... «ponga los dos, ponga los dos»!
Ribeiro dos Reis nem sequer
fora a Madrid. Ficara em Lisboa porque a sua mãe adoecera gravemente. O comando da
equipa foi entregue a Ricardo Ornelas. A táctica e as susbtituições foram
combinadas em Lisboa. A oito dias de distância. Era assim o futebol desse tempo. A goleada
deixou Portugal humilhado. Contra Ribeiro dos Reis lançou-se uma campanha de
hostilização, por vezes peripatética. E até se criou um êxito revisteiro que era mais um remoque: «E
se a Selecção trabalha/como eu quero/Agora é que não falha/Nove a zero.» Oito
dias depois, no Lumiar, os espanhóis voltaram a ganhar. Mas apenas por 2-1. Ribeiro dos
Reis sentiu-se melhor com a sua consciência. Mas como ele próprio diria, «tomou horror
ao cargo». E nunca mais quis ser seleccionador nacional...
As meias e as multas...
Foi árbitro e patriarca dos
árbitros. Escreveu quilómetros sobre as leis do futebol. O seu prestígio levou a que fosse
o primeiro português nomeado para o Comité de Arbitragem da FIFA. Foi por essa altura
que se decretou, no futebol, a proibição de se jogar com as meias em baixo. Uma vitória
sua. Capricho de uma vida. Batalha de muitos anos.
Ribeiro dos Reis não admitia que
futebolista da sua equipa jogasse com as meias em baixo, mesmo quando isso ainda não
era proibido. Quem o fizesse era multado em 10 escudos, ou em 50 no caso de
reincidência. Era no tempo em que os ordenados andavam à volta dos 500 escudos. Dizia que
era tudo questão de estética e que o jogador de futebol tinha de estar no campo com
beleza. Como um militar com o seu aparato.
Talvez esse fosse o único
sinal de prepotência dos seus métodos de treinador. Um treinador obcecado pelo
futebol de... ataque. Augusto Amaro desvendaria: «O Ribeirinho, que era a alcunha dele
quando jogava futebol, pensava que os jogos só se ganham marcando golos. Quando
passou a treinador, manteve o mesmo espírito. Não admitia que um jogador não conhecesse as
leis do jogo. Tratava todos da mesma maneira, mais parecendo um irmão mais
velho. Nunca nos culpava das derrotas, mas chorava, muitas vezes, de alegria, por nós
termos ganho. Mas o mais impressionante é que, sendo ele o principal obreiro disso,
achava sempre que o mérito era dos outros.»
Saber ganhar...
Como treinador a tempo
intermitente, Ribeiro dos Reis assinou o seu último (e, se calhar, mais significativo) título
em 1953. Obviamente, ao serviço do Benfica. Outra vez em missão de salvamento. Foi
como um duelo fratricida. É que do outro lado estava Cândido de Oliveira, como treinador
do F. C. Porto. O Benfica ganhou por 5-0. Os benfiquistas festejaram a vitória, em
jantar, num restaurante de Alvalade, com os portistas como... convidados especiais. Porque,
para Ribeiro dos Reis, não havia no futebol nada que se sobrepusesse ao fair play ou
ao respeito dos vencedores pelos vencidos. Era assim...
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