segunda-feira, 30 de maio de 2016

GRANDES NOMES

ARSÉNIO


Junto à muralha, no Barreiro, estendia-se longo areal. Rapazio, em euforia, dava pábulo aos seus sonhos. Atrás de uma bola. Quase sempre de trapos. Que o cauchu era luxo proibido para aqueles filhos de operários a quem tantas vezes faltava até a côdea de pão. E uma sardinha se comia retalhada, a dois, a três, a quatro. Um deles distinguia-se dos demais. Não por jogar sempre com a melena no ar, ondulando ao sabor breve da brisa que soprava do rio, mas pelo jeito com que mexia na trapeira. Chamava-se Arsénio, mas todos o conheciam por... Pinga. Que era o seu ídolo. Gostava mais de cinema que de bola, mas, sem dinheiro, divertia-se jogando. Faziam-se torneios entre equipas sempre certas e os prémios eram cromos dos ídolos de então.

Espírito Santo, Peyroteo, Pinga... O seu talento não podia continuar a desperdiçar-se naqueles campos improvisados de areia suja, com pedrinhas servindo de balizas. Foi testar qualidades ao Barreirense. Deslumbrou. Pouco tempo depois, na festa de despedida de Francisco Câmara, lançaram-no na equipa de honra, em desafio contra o Sporting. «Ainda não tinha 16 anos e quem me marcou foi o Aníbal Paciência. Ao princípio estava um pouco enervado, mas, depois, serenei e perdi o respeito ao valor doso jogador do Sporting.» Desse time não saiu mais. Teve ainda tempo para sagrar-se campeão nacional da II Divisão. O Barreirense bateu a Sanjoanense, por 6-1, nas Amoreiras. Os técnicos do Benfica ficaram de olho nele. Por essa altura, Arsénio e Moreira, esse mesmo, o... Pai Natal, decidiram mostrar as suas capacidades no Vitória de Setúbal. Por sua conta e risco. Só lá foram uma vez, porque os emissários benfiquistas foram ao Barreiro oferecer-lhes o sonho que tantas vezes lhes aqueceu as ilusões.
Bastou um treino para que Janos Biri ficasse entusiasmado com Arsénio. De tal modo que lhe pediram logo que assinasse a ficha, recebendo por isso seis contos, ficando, igualmente, a ganhar 750 escudos por mês. Que era o ordenado dos craques...

Por essa altura era já aprendiz de serralheiro, na CUF. A oficial chegaria pouco depois. A paixão do futebol, mais que o dinheiro que, então, ganhava, suavizava-lhe os sacrifícios. Para poder apanhar o barco das 5.45 horas, Arsénio levantava-se três vezes por semana na madrugada alta. No barco encontrava-se com os demais futebolistas da terra que vinham para Lisboa. Para se treinarem, com ele, no Benfica, Moreira, Corona, Félix, Rogério Contreiras Rogério Fontes e José Luís; a caminho do Campo Grande, Azevedo, Armando Ferreira e Soeiro; para as Salésias, Quaresma e Salvador. Arsénio treinava-se e regressava, rápido, ao Barreiro para trabalhar na serralharia da CUF. Foi assim anos a fio. Mas nem isso lhe entenebreceu o ânimo ou ofuscou o brilho.



Bola-de-prata para se vingar de Otto...

Miúdo de corpo, era um temível homem de área. No campo era o que era na vida. um ser solidário, sempre mais preocupado com os outros que consigo mesmo. Por isso, no Benfica todos o consideravam o mais apaixonante jogador de equipa que por lá havia. Pode mesmo dizer-se que, marcando muitos golos - de uma vez, em vitória do Benfica sobre o Estoril por 7-0, apontou... seis e mais cinco marcou contra o F. C. Porto, na estrondosa vitória por 8-2, no jogo de inauguração do Estádio da Antas -, muitos mais lhe ficou a dever José Águas, de tal forma que nas suas Bolas de Prata havia muito de Arsénio, que, sendo jogador fantástico, sempre cheio de vivacidade, ágil, com fôlego de sete gatos, só não foi grande homem de Selecção por ter o lugar tapado por esse geniozinho, que fazia nos campos quadros com o mesmo encanto que os de Malho na tela, chamado Manuel Vasques. Mas foi ainda mais fantástico ho­mem de... Taças. Disputou seis finais da Taça de Portugal, todas ganhando: duas ao Sporting (dois golos), uma ao Estoril (um golo), uma ao Atlético. uma à Académica (um golo) e uma ao F. C. Porto (um golo). E foi graças a um golo seu que o Benfica abriu o caminho para a conquista da taça Latina.
Quando, em 1954, Otto Glória chegou ao Benfica, pediu-lhe para se dedicarem exclusivo ao futebol. Disse-lhe que não. Na época seguinte foi despedido. Por querer continuar a ser jogador-trabalhador ingressou na Cuf, com tempo ainda para ganhar uma Bola de Prata. Travaços e Vasques, que, nessa temporada de 1957/58, se sagraram, pela última vez, campeões nacionais de futebol, logo após a festa leonina correram à estação de correios dos Restauradores para enviarem para o Barreiro um telegrama carregado de sentimentalismo, que dizia mais ou menos assim: «Parabéns dos velhinhos como tu, que ainda são capazes de fazer coisas tão bonitas...»

A magia de um golo...

Para os benfiquistas, a Taça Latina disputada em 1950, no Estádio Nacional, era sonho quente. O ataque de anginas que varreu a equipa da Lázio facilitou a chegada à final. Contra o Bordéus. No primeiro jogo, empate a três. Na finalíssima os franceses depressa chegaram à vantagem. Estavam já quase vazias as bancadas quando Arsénio, com um golo espectacular, a 15 segundos do final, empatou. Renasceu a magia da esperança. Os gritos «Benfica! Benfica! Benfica!» ecoaram fundo, num espectáculo impressionante. Mais meia hora e golos nada. Outro prolongamento logo de seguida. Havia jogadores que já se arrastavam, desfigurados pelo esforço, aos torcilhões, alimentados apenas por uma réstia de esperança. Francisco Moreira, o Pai Natal, que nesse jogo assumira estatuto de capitão por Francisco Ferreira, doente, não querer jogar para não prejudicar a equipa, reiterava palavras de encorajamento sempre que sentia algum colega a desfalecer: «Regressei à força dos 25 anos para ganhar a Taça Latina. Lutemos até cairmos para o lado, mortos pelo cansaço»...
De súbito, quase ao cair do pano, Moreira rematou, confusão na baliza dos franceses, não se sabe ainda hoje se Julinho terá ou não tocado na bola, o que se sabe é que aquele golo valeu a Taça Latina. Estalou o euforia. Quando o árbitro apitou, Carona desmaiou no campo. Foi levado para os balneários de charola. Os colegas despiram-no, descalçaram-no, puseram-no no duche e nada: a insensibilidade manteve-se, oferecendo uma imagem bizarra, debaixo do chuveiro, com a água tépida a salpicar-lhe o corpo ainda desfalecido. Quando deu cobro de si só foi capaz de dizer que soubera, finalmente, o que era o Paraíso. Os outros benfiquistas também. Tudo por causa daquele golo de Arsénio a 15 segundos do fim...

Arsénio marcou o golo do empate, na finalíssima da Taça Latina, a 15 segundos do final do tempo regulamentar. Caiu no relvado e ficou a olhar o horizonte. Francisco Ferreira foi felicitá-lo. Mal sabia que por causa daquele golo o Benfica ganharia o seu primeiro grande título internacional.

Arsénio - Berreirense, Benfica e CUF



A tal Taça Latina


Sem comentários:

Enviar um comentário