GRANDES NOMES
ARSÉNIO
Junto à muralha, no
Barreiro, estendia-se longo areal. Rapazio, em euforia, dava pábulo aos seus
sonhos. Atrás de uma bola. Quase sempre de trapos. Que o cauchu era luxo
proibido para aqueles filhos de operários a quem tantas vezes faltava até a
côdea de pão. E uma sardinha se comia retalhada, a dois, a três, a quatro. Um
deles distinguia-se dos demais. Não por jogar sempre com a melena no ar,
ondulando ao sabor breve da brisa que soprava do rio, mas pelo jeito com que
mexia na trapeira. Chamava-se Arsénio, mas todos o conheciam por... Pinga. Que
era o seu ídolo. Gostava mais de cinema que de bola, mas, sem dinheiro,
divertia-se jogando. Faziam-se torneios entre equipas sempre certas e os
prémios eram cromos dos ídolos de então.
Espírito Santo, Peyroteo,
Pinga... O seu talento não podia continuar a desperdiçar-se naqueles campos
improvisados de areia suja, com pedrinhas servindo de balizas. Foi testar
qualidades ao Barreirense. Deslumbrou. Pouco tempo depois, na festa de despedida
de Francisco Câmara, lançaram-no na equipa de honra, em desafio contra o
Sporting. «Ainda não tinha 16 anos e quem me marcou foi o Aníbal Paciência. Ao
princípio estava um pouco enervado, mas, depois, serenei e perdi o respeito ao
valor doso jogador do Sporting.» Desse time não saiu mais. Teve ainda tempo
para sagrar-se campeão nacional da II Divisão. O Barreirense bateu a
Sanjoanense, por 6-1, nas Amoreiras. Os técnicos do Benfica ficaram de olho
nele. Por essa altura, Arsénio e Moreira, esse mesmo, o... Pai Natal, decidiram
mostrar as suas capacidades no Vitória de Setúbal. Por sua conta e risco. Só lá
foram uma vez, porque os emissários benfiquistas foram ao Barreiro
oferecer-lhes o sonho que tantas vezes lhes aqueceu as ilusões.
Bastou um treino para que
Janos Biri ficasse entusiasmado com Arsénio. De tal modo que lhe pediram logo
que assinasse a ficha, recebendo por isso seis contos, ficando, igualmente, a
ganhar 750 escudos por mês. Que era o ordenado dos craques...
Por essa altura era já
aprendiz de serralheiro, na CUF. A oficial chegaria pouco depois. A paixão do
futebol, mais que o dinheiro que, então, ganhava, suavizava-lhe os sacrifícios.
Para poder apanhar o barco das 5.45 horas, Arsénio levantava-se três vezes por
semana na madrugada alta. No barco encontrava-se com os demais futebolistas da
terra que vinham para Lisboa. Para se treinarem, com ele, no Benfica, Moreira,
Corona, Félix, Rogério Contreiras Rogério Fontes e José Luís; a caminho do
Campo Grande, Azevedo, Armando Ferreira e Soeiro; para as Salésias, Quaresma e
Salvador. Arsénio treinava-se e regressava, rápido, ao Barreiro para trabalhar
na serralharia da CUF. Foi assim anos a fio. Mas nem isso lhe entenebreceu o
ânimo ou ofuscou o brilho.
Bola-de-prata para se vingar
de Otto...
Miúdo de corpo, era um
temível homem de área. No campo era o que era na vida. um ser solidário, sempre
mais preocupado com os outros que consigo mesmo. Por isso, no Benfica todos o
consideravam o mais apaixonante jogador de equipa que por lá havia. Pode mesmo dizer-se
que, marcando muitos golos - de uma vez, em vitória do Benfica sobre o Estoril
por 7-0, apontou... seis e mais cinco marcou contra o F. C. Porto, na
estrondosa vitória por 8-2, no jogo de inauguração do Estádio da Antas -,
muitos mais lhe ficou a dever José Águas, de tal forma que nas suas Bolas de
Prata havia muito de Arsénio, que, sendo jogador fantástico, sempre cheio de
vivacidade, ágil, com fôlego de sete gatos, só não foi grande homem de Selecção
por ter o lugar tapado por esse geniozinho, que fazia nos campos quadros com o
mesmo encanto que os de Malho na tela, chamado Manuel Vasques. Mas foi ainda
mais fantástico homem de... Taças. Disputou seis finais da Taça de Portugal,
todas ganhando: duas ao Sporting (dois golos), uma ao Estoril (um golo), uma ao
Atlético. uma à Académica (um golo) e uma ao F. C. Porto (um golo). E foi
graças a um golo seu que o Benfica abriu o caminho para a conquista da taça
Latina.
Quando, em 1954, Otto Glória
chegou ao Benfica, pediu-lhe para se dedicarem exclusivo ao futebol. Disse-lhe
que não. Na época seguinte foi despedido. Por querer continuar a ser
jogador-trabalhador ingressou na Cuf, com tempo ainda para ganhar uma Bola de
Prata. Travaços e Vasques, que, nessa temporada de 1957/58, se sagraram, pela
última vez, campeões nacionais de futebol, logo após a festa leonina correram à
estação de correios dos Restauradores para enviarem para o Barreiro um
telegrama carregado de sentimentalismo, que dizia mais ou menos assim:
«Parabéns dos velhinhos como tu, que ainda são capazes de fazer coisas tão
bonitas...»
A magia de um golo...
Para os benfiquistas, a Taça
Latina disputada em 1950, no Estádio Nacional, era sonho quente. O ataque de
anginas que varreu a equipa da Lázio facilitou a chegada à final. Contra o
Bordéus. No primeiro jogo, empate a três. Na finalíssima os franceses depressa
chegaram à vantagem. Estavam já quase vazias as bancadas quando Arsénio, com um
golo espectacular, a 15 segundos do final, empatou. Renasceu a magia da
esperança. Os gritos «Benfica! Benfica! Benfica!» ecoaram fundo, num
espectáculo impressionante. Mais meia hora e golos nada. Outro prolongamento
logo de seguida. Havia jogadores que já se arrastavam, desfigurados pelo
esforço, aos torcilhões, alimentados apenas por uma réstia de esperança.
Francisco Moreira, o Pai Natal, que nesse jogo assumira estatuto de capitão por
Francisco Ferreira, doente, não querer jogar para não prejudicar a equipa,
reiterava palavras de encorajamento sempre que sentia algum colega a
desfalecer: «Regressei à força dos 25 anos para ganhar a Taça Latina. Lutemos
até cairmos para o lado, mortos pelo cansaço»...
De súbito, quase ao cair do
pano, Moreira rematou, confusão na baliza dos franceses, não se sabe ainda hoje
se Julinho terá ou não tocado na bola, o que se sabe é que aquele golo valeu a
Taça Latina. Estalou o euforia. Quando o árbitro apitou, Carona desmaiou no
campo. Foi levado para os balneários de charola. Os colegas despiram-no,
descalçaram-no, puseram-no no duche e nada: a insensibilidade manteve-se, oferecendo
uma imagem bizarra, debaixo do chuveiro, com a água tépida a salpicar-lhe o
corpo ainda desfalecido. Quando deu cobro de si só foi capaz de dizer que
soubera, finalmente, o que era o Paraíso. Os outros benfiquistas também. Tudo
por causa daquele golo de Arsénio a 15 segundos do fim...
Arsénio
marcou o golo do empate, na finalíssima da Taça Latina, a 15 segundos do final
do tempo regulamentar. Caiu no
relvado e ficou a olhar o horizonte. Francisco Ferreira foi felicitá-lo. Mal sabia que
por causa daquele golo o Benfica ganharia o seu primeiro grande título
internacional.
Arsénio - Berreirense, Benfica e CUF
A tal Taça Latina
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